terça-feira, 1 de maio de 2012

Bem-vindo, Ayrton!

BEM-VINDO, AYRTON!

 Autor: Edson Osni Ramos
                        
 (para Guilherme, meu filho, que comigo chorou...)

              O rebuliço era geral.   
            Dois Arcanjos corriam desenfreadamente ao encontro de São Pedro, para relatar a boa nova.  Tentavam falar ao mesmo tempo, o que deixava o velho Santo vermelho de indignação.
            - “Mais devagar, mais devagar!  Isto aqui deve ser um lugar de calma e paz celestial!  Fala um de cada vez, senão é impossível entender...”
            - “Ele vem aí, ele vem aí”, diziam freneticamente...
            - ”Ele quem, Gabriel?”
            - ”O campeão, o campeão, diziam em coro”, não escondendo a emoção...
          O velho Santo coçou as longas e brancas melenas, cofiou a barba, há muito por fazer.  Resmungou consigo mesmo, como de costume...
            - “Depois o Chefe se queixa quando alguém reclama que Ele é brasileiro.  É só eles não apresentarem bons resultados aqui e Ele logo manda chamar reforços...”
            - “E que reforço, e que reforço! “ o coro dos anjos era, digamos, angelical...
            A notícia logo se espalhou.  Em cada canto, em cada botequim celeste, no meio de cada jardim, de cada éden, o comentário era um só, de incredulidade:
            - “Mas, assim tão cedo!  Não era para o Chefe ter esperado mais alguns anos?!?“
            - “É, Ele está realmente sendo influenciado pelos brasileiros.“
            - “Well, isto ser deslealdade!!“ Obliterou um velho inglês, de boné quadriculado e bigode grisalho, ao lado de um seu compatriota, também de chapéu quadriculado e bigodinho aparado, só que bem mais alto.
            - “Well, isto ser bom para meu pequeno Damon.” 
            - ”Mister Hill!” sussurrou-lhe o companheiro, dentro da mais perfeita fleuma britânica...  ”O senhor ainda está preocupado com as terrenas coisas, em detrimento de outras celestiais...”
            - ”Mister Chapman...  Só querer que pequeno Damon seja primeiro piloto de nossa inglesa equipe...”
            Enquanto os dois ingleses caminhavam em busca de mais um copo de gin, a "bebida dos deuses" (Isto aqui é heresia!, protestava alguém perto), iam pensando em como recepcionar o que estava chegando...
            Colin Chapman e Graham Hill, pretendiam uma festa a altura, dentro da mais perfeita ordem.
            A notícia também chegou aos brasileiros.
            - Finalmente! Finalmente!
            A legião de fãs não era só de compatriotas.  Anjos de várias nacionalidades e até alguns santos eram só sorrisos.  Os brasileiros diziam que o Chefe só se preocupava em dar alegrias automobilísticas aos brasileiros de lá. Aqui só o Môco (o José Carlos Pace) e o velho Chico Landi é que às vezes conseguiam alguma coisa. 
            - ”Mas, também!  Enfrentar o Gilles e o Jim, não é mole!”
            Claro, Gilles Villeneuve e Jim Clark, ao lado de Jochen Rindt e Ronnie Petterson estavam levando tudo nas últimas temporadas.  Aliás, os escoceses diziam entre goles de um divino scoth, que durante os próximos séculos dificilmente alguém superaria o Jim.  Evidentemente havia os que protestavam.
            Entre os brasileiros só o João Saldanha reclamou.  E o fez no seu programa na TV "Céu para Todos", Sublime Futebol, o SF que, aliás, deveria ser Santo Futebol. É que o João não gostou do nome, "não fica bem, prá um comunista como eu, esse nome, né?!".  O querido João continuava o mesmo, sempre reclamando com aquela sua irreverência...
            - ”Mas o Chefe deve tá louco.  Eu pedi reforços para o futebol...”
            - “João, o Dener já chegou, e eu ainda consigo dar uns driblinhos“, dizia ao seu lado um magro Mané Garrincha, aqui também chamado de "Anjo das Pernas Tortas"...
            - “É sempre assim, é sempre assim“, resmungava o João... “Aqui, como lá, só ligam prás corridas... Coisa mais sem graça.“
            Aliás, o Mané só conseguiu entender o que era uma prova de fórmula 1 quando chegou aqui.
            - “Lá eu também achava sem graça, jamais entendia qual era o placar final!“  Era o Mané de sempre, com sua doce ingenuidade.
            Os políticos queriam organizar uma recepção ao novo companheiro.
            Bem, políticos aqui havia muito poucos, a maioria aportava em outras plagas, por isso mesmo eram respeitadíssimos.   Chegaram até em falar em convidar o "Alferes" para o discurso ... 
            - “O Alferes é de outra época, o máximo que ele se interessa agora é em agulhas esterilizadas e radiografias dentárias... “, justificavam o ato de não convidá-lo.
            - “Mas temos que recepcioná-lo, de fazê-lo ver o quanto é querido e amado aqui.“

            O velho Santo apareceu para botar ordem na zorra que estava se armando. Parece que um "trio elétrico " já estava contratado.  Diziam que até o Raul Seixas ia cantar nele o seu "Tente outra vez"...
            Uma escola de samba estava sendo formada, a "Unidos do Morro Santo", que desfilaria com o tema, "Pilotado por nós, guiado pelo Senna".
            São Pedro ia a loucura com os brasileiros.    
            - “Ordem, ordem, meus anjos... Isto aqui não é o Brasil....  Por favor, ordem, senão o Chefe chega e vai achar que deixei entrar alguns que deveriam ainda fazer o estágio no lado de lá...  Ordem!!!“
            Era difícil conter a galera.   Carruagens celestes eram pintadas de verde e amarelo. Até cavalos alados, com suas crinas escovadas, imaculadamente brancas, tiveram boné do Banco Nacional colocado na cabeça, tudo organizado de acordo com o padrão dos "da terrinha".  Um dos organizadores da recepção falava aos gritos:
            - “Quando ele chegar gente faz assim, corre, pega ele e carrega nos braços até a sala do Chefe.  É claro que o Chefe vai querer falar com ele, dar-lhe um abraço.“
            - “Minha nossa!  Pensavam outros...  “
            Como sentiu que o velho Santo estava em apuros, o próprio Chefe, dentro de sua onipresença, veio aos brasileiros...
            - “Mas, em Meu Nome, por que todo esse barulho???“
            Todos, em silêncio, sorrindo de felicidade, da boca para dentro, ou seja, com o coração, ajoelharam-se diante da Sagrada Presença, e sem nenhum murmúrio demonstraram ao Todo Poderoso toda a alegria pelo Anjo que estava chegando.
            O Senhor entendeu-lhes e ajudou-os a fazer as faixas e "Boas Vindas".

            O próprio Senhor foi a frente da comissão celestial de recepção.  Todos, emocionados, ao ver aquele jeito de caminhar, de sorrir, do recém-chegado, disseram a uma só voz:
            - “Bem-vindo, Ayrton...  ao pódio da eternidade!“
            E, então, enquanto alguns cantarolavam a musiquinha da vitória, outros esfuziantes gritavam:
            - “Ayrrrrrrton Seeeeenna do Céu do Brasillll.“
    
            Naquela noite, no Paraíso, os dois ingleses ainda comentavam...
            - "Well,  Mister Hill, esse Anjo ser demais..."
            -  "Havens !  Ser mesmo, Mister Chapman..."

            Na mesma noite, no firmamento do Brasil, uma nova estrela surgiu.
            Tomara que ela continue a aquecer o coração de nós, brasileiros...


GLOSSÁRIO

- José Carlos Pace (Môco): piloto de Fórmula 1, vencedor do GP do Brasil de 1977, faleceu em um acidente aéreo naquele mesmo ano.
- Chico Landi: piloto, de época anterior à Fórmula 1, chegou a vencer provas na Europa, faleceu em 1989, em São Paulo.
- Jim Clark: bi-campeão de Fórmula 1 em 1963 e 1965, faleceu em uma prova de Fórmula 2 em 1968, na Alemanha.  Era considerado um gênio que ainda poderia ser campeão novamente e o mais técnico piloto de automobilismo em todos os tempos, até o surgimento de Ayrton Senna da Silva.
- Gilles Villeneuve: piloto genial, faleceu no ano em que tinha tudo para ser campeão, 1982, em um treino para o GP da Bélgica.  Seu filho, Jacques Villeneuve foi campeão de Fórmula 1 na temporada de 1997.
- Jochen Rindt: piloto austríaco, campeão mundial em 1970 ("post morten", pois faleceu nesse mesmo ano, em Monza, antes do término do campeonato).
- Ronnie Petterson: piloto sueco de muita habilidade, vencedor de várias corridas sem, contudo, ter-se sagrado campeão.  Faleceu em Monza, em 1978.
- Collin Chapman: dono da equipe Lotus, contratou Senna em 1985, tendo falecido antes de vê-lo concretizar sua profecia de que ali estava um campeão.
- Graham Hill: bi-campeão de Fórmula 1, em 1962 e 1968, já havia parado de correr quando faleceu em um acidente aéreo em 1976.  Era chamado de Mister Mônaco por ter vencido cinco vezes o GP de Mônaco (depois dele, Prost venceu também cinco vezes e Senna, seis vezes, cinco das quais consecutivas, nesse famoso circuito).  É pai do piloto Damon Hill, último companheiro de Senna na equipe Williams e campeão da temporada de 1996.
- João Saldanha: técnico, jornalista, homem do futebol.  Foi militante do partido comunista e, acima de tudo, um ser humano fabuloso.  Faleceu em 1990, na Itália, durante a Copa do Mundo.
- Dener: jogador de futebol, jogou no futebol paulista, gaúcho e carioca, tendo falecido em 1994, em acidente automobilístico.  Era considerado um jovem jogador de muito futuro.
- Mané Garrincha: gênio do futebol, só comparável a Pelé.  Bi-campeão mundial nas copas de 1958, na Suécia e 1962, no Chile, onde foi considerado o principal jogador daquele mundial. Faleceu em 1982.
- Raul Seixas: gênio da música brasileira.  Faleceu em 1989.  Segundo alguns, Raul não morreu, virou luar...
- Ayrton Senna: imortal...


Essa crônica foi escrita em 2 de maio de 1994, tendo sido revista e publicada em 2008. Faz parte do livro "Essas mulheres e outras histórias", de Edson O. Ramos, editora Bernúnica, Florianópolis.

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