BEM-VINDO, AYRTON!
Autor: Edson Osni Ramos
(para Guilherme, meu
filho, que comigo chorou...)
O
rebuliço era geral.
Dois
Arcanjos corriam desenfreadamente ao encontro de São Pedro, para relatar a boa
nova. Tentavam falar ao mesmo tempo, o
que deixava o velho Santo vermelho de indignação.
- “Mais devagar, mais devagar! Isto aqui deve ser um lugar de calma e paz
celestial! Fala um de cada vez, senão é
impossível entender...”
- “Ele vem aí, ele vem aí”, diziam freneticamente...
- ”Ele quem, Gabriel?”
- ”O campeão, o campeão, diziam em coro”, não escondendo
a emoção...
O velho Santo coçou as longas e brancas melenas, cofiou a
barba, há muito por fazer. Resmungou
consigo mesmo, como de costume...
- “Depois o Chefe se queixa quando alguém reclama que Ele
é brasileiro. É só eles não apresentarem
bons resultados aqui e Ele logo manda chamar reforços...”
- “E que reforço, e que reforço! “ o coro dos anjos era,
digamos, angelical...
A notícia logo se espalhou. Em cada canto, em cada botequim celeste, no meio
de cada jardim, de cada éden, o comentário era um só, de incredulidade:
- “Mas, assim tão cedo!
Não era para o Chefe ter esperado mais alguns anos?!?“
- “É, Ele está realmente sendo influenciado pelos
brasileiros.“
- “Well, isto ser deslealdade!!“ Obliterou um velho
inglês, de boné quadriculado e bigode grisalho, ao lado de um seu compatriota,
também de chapéu quadriculado e bigodinho aparado, só que bem mais alto.
- “Well, isto ser bom para meu pequeno Damon.”
- ”Mister Hill!” sussurrou-lhe o companheiro, dentro da
mais perfeita fleuma britânica... ”O
senhor ainda está preocupado com as terrenas coisas, em detrimento de outras
celestiais...”
- ”Mister Chapman...
Só querer que pequeno Damon seja primeiro piloto de nossa inglesa equipe...”
Enquanto os dois ingleses caminhavam em busca de mais um
copo de gin, a "bebida dos deuses" (Isto aqui é heresia!, protestava
alguém perto), iam pensando em como recepcionar o que estava chegando...
Colin Chapman e Graham Hill, pretendiam uma festa a
altura, dentro da mais perfeita ordem.
A notícia também chegou aos brasileiros.
- Finalmente! Finalmente!
A legião de fãs não era só de compatriotas. Anjos de várias nacionalidades e até alguns
santos eram só sorrisos. Os brasileiros
diziam que o Chefe só se preocupava em dar alegrias automobilísticas aos brasileiros
de lá. Aqui só o Môco (o José Carlos Pace) e o velho Chico Landi é que às vezes
conseguiam alguma coisa.
- ”Mas, também!
Enfrentar o Gilles e o Jim, não é mole!”
Claro, Gilles Villeneuve e Jim Clark, ao lado de Jochen
Rindt e Ronnie Petterson estavam levando tudo nas últimas temporadas. Aliás, os escoceses diziam entre goles de um
divino scoth, que durante os próximos séculos dificilmente alguém superaria o
Jim. Evidentemente havia os que protestavam.
Entre os brasileiros só o João Saldanha reclamou. E o fez no seu programa na TV "Céu para
Todos", Sublime Futebol, o SF que, aliás, deveria ser Santo Futebol. É que
o João não gostou do nome, "não fica bem, prá um comunista como eu, esse
nome, né?!". O querido João
continuava o mesmo, sempre reclamando com aquela sua irreverência...
-
”Mas o Chefe deve tá louco. Eu pedi
reforços para o futebol...”
- “João, o Dener já chegou, e eu ainda consigo dar uns
driblinhos“, dizia ao seu lado um magro Mané Garrincha, aqui também chamado de
"Anjo das Pernas Tortas"...
- “É sempre assim, é sempre assim“, resmungava o João...
“Aqui, como lá, só ligam prás corridas... Coisa mais sem graça.“
Aliás, o Mané só conseguiu entender o que era uma prova
de fórmula 1 quando chegou aqui.
- “Lá eu também achava sem graça, jamais entendia qual
era o placar final!“ Era o Mané de sempre,
com sua doce ingenuidade.
Os políticos queriam organizar uma recepção ao novo companheiro.
Bem, políticos aqui havia muito poucos, a maioria
aportava em outras plagas, por isso mesmo eram respeitadíssimos. Chegaram até em falar em convidar o
"Alferes" para o discurso ...
- “O Alferes é de outra época, o máximo que ele se
interessa agora é em agulhas esterilizadas e radiografias dentárias... “,
justificavam o ato de não convidá-lo.
- “Mas temos que recepcioná-lo, de fazê-lo ver o quanto é
querido e amado aqui.“
O velho Santo apareceu para botar ordem na zorra que estava
se armando. Parece que um "trio elétrico " já estava contratado. Diziam que até o Raul Seixas ia cantar nele o
seu "Tente outra vez"...
Uma escola de samba estava sendo formada, a "Unidos
do Morro Santo", que desfilaria com o tema, "Pilotado por nós, guiado
pelo Senna".
São Pedro ia a loucura com os brasileiros.
- “Ordem, ordem, meus anjos... Isto aqui não é o
Brasil.... Por favor, ordem, senão o
Chefe chega e vai achar que deixei entrar alguns que deveriam ainda fazer o
estágio no lado de lá... Ordem!!!“
Era difícil conter a galera. Carruagens celestes eram pintadas de verde e
amarelo. Até cavalos alados, com suas crinas escovadas, imaculadamente brancas,
tiveram boné do Banco Nacional colocado na cabeça, tudo organizado de acordo
com o padrão dos "da terrinha".
Um dos organizadores da recepção falava aos gritos:
- “Quando ele chegar gente faz assim, corre, pega ele e
carrega nos braços até a sala do Chefe.
É claro que o Chefe vai querer falar com ele, dar-lhe um abraço.“
- “Minha nossa!
Pensavam outros... “
Como sentiu que o velho Santo estava em apuros, o próprio
Chefe, dentro de sua onipresença, veio aos brasileiros...
- “Mas, em
Meu Nome, por que todo esse barulho???“
Todos, em silêncio, sorrindo de felicidade, da boca para
dentro, ou seja, com o coração, ajoelharam-se diante da Sagrada Presença, e sem
nenhum murmúrio demonstraram ao Todo Poderoso toda a alegria pelo Anjo que
estava chegando.
O Senhor entendeu-lhes e ajudou-os a fazer as faixas e
"Boas Vindas".
O próprio Senhor foi a frente da comissão celestial de
recepção. Todos, emocionados, ao ver
aquele jeito de caminhar, de sorrir, do recém-chegado, disseram a uma só voz:
- “Bem-vindo, Ayrton...
ao pódio da eternidade!“
E, então, enquanto alguns cantarolavam a musiquinha da
vitória, outros esfuziantes gritavam:
- “Ayrrrrrrton Seeeeenna do Céu do Brasillll.“
Naquela noite, no Paraíso, os dois ingleses ainda comentavam...
-
"Well, Mister Hill, esse Anjo ser
demais..."
- "Havens
! Ser mesmo, Mister Chapman..."
Na mesma noite, no firmamento do Brasil, uma nova estrela
surgiu.
Tomara
que ela continue a aquecer o coração de nós, brasileiros...
GLOSSÁRIO
- José Carlos Pace
(Môco): piloto de Fórmula 1, vencedor do GP do Brasil de 1977, faleceu em um acidente
aéreo naquele mesmo ano.
- Chico Landi: piloto, de
época anterior à Fórmula 1, chegou a vencer provas na Europa, faleceu em 1989, em São Paulo.
- Jim Clark: bi-campeão
de Fórmula 1 em 1963 e 1965, faleceu em uma prova de Fórmula 2 em 1968, na
Alemanha. Era considerado um gênio que
ainda poderia ser campeão novamente e o mais técnico piloto de automobilismo em
todos os tempos, até o surgimento de Ayrton Senna da Silva.
- Gilles Villeneuve:
piloto genial, faleceu no ano em que tinha tudo para ser campeão, 1982, em um
treino para o GP da Bélgica. Seu filho,
Jacques Villeneuve foi campeão de Fórmula 1 na temporada de 1997.
- Jochen Rindt: piloto
austríaco, campeão mundial em 1970 ("post morten", pois faleceu nesse
mesmo ano, em Monza, antes do término do campeonato).
- Ronnie Petterson: piloto sueco de muita habilidade,
vencedor de várias corridas sem, contudo, ter-se sagrado campeão. Faleceu em Monza, em 1978.
- Collin Chapman: dono da
equipe Lotus, contratou Senna em 1985, tendo falecido antes de vê-lo
concretizar sua profecia de que ali estava um campeão.
- Graham Hill: bi-campeão de Fórmula 1, em 1962 e
1968, já havia parado de correr quando faleceu em um acidente aéreo em
1976. Era chamado de Mister Mônaco por
ter vencido cinco vezes o GP de Mônaco (depois dele, Prost venceu também cinco
vezes e Senna, seis vezes, cinco das quais consecutivas, nesse famoso
circuito). É pai do piloto Damon Hill,
último companheiro de Senna na equipe Williams e campeão da temporada de 1996.
- João Saldanha: técnico,
jornalista, homem do futebol. Foi
militante do partido comunista e, acima de tudo, um ser humano fabuloso. Faleceu em 1990, na Itália, durante a Copa do
Mundo.
- Dener: jogador de
futebol, jogou no futebol paulista, gaúcho e carioca, tendo falecido em 1994,
em acidente automobilístico. Era considerado
um jovem jogador de muito futuro.
- Mané Garrincha: gênio
do futebol, só comparável a Pelé. Bi-campeão
mundial nas copas de 1958, na Suécia e 1962, no Chile, onde foi considerado o
principal jogador daquele mundial. Faleceu em 1982.
- Raul Seixas: gênio da
música brasileira. Faleceu em 1989. Segundo alguns, Raul não morreu, virou
luar...
- Ayrton Senna:
imortal...
Essa
crônica foi escrita em 2 de maio de 1994, tendo sido revista e
publicada em 2008. Faz parte do livro "Essas mulheres e outras
histórias", de Edson O. Ramos, editora Bernúnica, Florianópolis.
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